O jovem morto após invadir jaula de leoa em João Pessoa: ‘A última etapa de uma tragédia anunciada’

Homem é morto por leoa após entrar em jaula em zoológico de João Pessoa
Gerson de Melo Machado, de 19 anos, morreu no domingo (30/11) após ser atacado por uma leoa ao entrar no recinto do animal no Parque Arruda Câmara, conhecido como ‘Bica’, em João Pessoa.
Vídeos feitos por visitantes mostram o jovem escalando uma estrutura lateral, usando uma árvore como apoio e ultrapassando grades e barreiras até alcançar o interior da jaula. A leoa, que estava afastada, se aproxima e o observa descer de uma árvore. Os dois param, mas Gerson decide continuar se aproximando. Nesse momento, ela o ataca.
Ele foi sepultado na tarde desta segunda-feira (1/12), no Cemitério do Cristo. Estavam presentes familiares e assistentes sociais que acompanharam o rapaz. Uma dessas pessoas foi a conselheira tutelar Verônica Oliveira, que conheceu Gerson há nove anos.
Para ela, a morte de Gerson simboliza uma falha coletiva do Estado, da sociedade e da rede de proteção em garantir o mínimo a um jovem com transtornos.
A conselheira tutelar Verônica Oliveira conhecia Gerson há nove anos
Arquivo pessoal
“Ele era muito mais do que o vídeo do parque. Era um menino abandonado, adoecido, negligenciado por todo o sistema”, lamentou. “O que aconteceu no domingo foi a última etapa de uma tragédia anunciada.”
Segundo ela, somente nesta segunda-feira saiu a decisão judicial para que ele fosse internado. Nesses anos, diz, houve a tentativa para que ele recebesse o tratamento correto — mas a resposta que vinha das autoridades é que Gerson tinha problemas comportamentais.
“Ele passou por todas as casas de acolhimento institucional em João Pessoa. O tempo todo tentamos conseguir um laudo. A psiquiatra do [Complexo Psiquiátrico] Juliano Moreira dizia que ele não tinha nada, que o problema era comportamental”, diz a conselheira tutelar.
“Problemas comportamentais todos nós temos. Mas nem por isso a gente entra numa jaula de leão ou joga paralelepípedo no carro da polícia. Gerson foi negligenciado. Primeiro no direito de ter família. Depois, no direito de ter tratamento para saúde mental, porque não tinha laudo”, afirmou.
Gerson foi sepultado na tarde desta segunda-feira (1/12)
AFP via BBC
A conselheira enviou à reportagem um laudo de 2023 do psiquiatra Klecyus Cabral dos Reis. O documento descreve “comportamento disjuntivo”, “episódios de oscilação de humor”, “labilidade [instabilidade] afetiva” e “impulsividade”, orientando tratamento multidisciplinar em regime integral.
Questionada, a Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa disse que “mantém uma rede de saúde mental estruturada com serviços que atendem durante todo o ano.
“A porta de entrada para essa assistência é a Atenção Básica, por meio das Equipes de Saúde da Família, que reconhecem as necessidades da população e fazem a ponte com os demais serviços da rede. Assim, são realizados os encaminhamentos necessários para os serviços adequados para receber cada indivíduo”, afirma a entidade.
Por meio de vídeo, a diretora do Centros de Atenção Psicossocial Caminhar, Janaina D’Emery, responsável pelo acompanhamento de Gerson após os 18 anos, relatou que ele foi acompanhado desde a infância. Ele chegou a esse serviço em dezembro de 2024, disse ela, mas tinha dificuldade para aderir ao tratamento.
“A gente entende que Gerson, por faltar essa rede de apoio, isso dificultava o seu tratamento. Então, não tinha adesão. Para vocês verem, ele participou aqui em dezembro, depois ele desapareceu. Fizemos algumas buscas ativas. Ele retornou em junho e depois desapareceu de novo”, conta.
A diretora do Centros de Atenção Psicossocial Caminhar, Janaina D’Emery, diz que Gerson foi acompanhado desde a infância
Reprodução
“Quando nós fomos buscar informações, ele estava em um hospital psiquiátrico em Recife. Chegou na semana passada e veio direto ao serviço, onde o acolhemos novamente, onde ofertamos novamente o tratamento para a continuidade. Infelizmente, esse fato aconteceu no domingo. O último dia que ele veio aqui foi na quinta-feira. Na sexta, já não compareceu mais”.
O Ministério Público da Paraíba abriu investigação para acompanhar as medidas adotadas após a morte de Gerson.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente deve informar em até 15 dias as providências adotadas, “especificando eventuais procedimentos administrativos, vistorias, avaliações técnicas ou medidas de reforço de segurança relacionadas ao Parque Arruda Câmara”.
Nesse mesmo prazo, a direção do Parque Zoobotânico Arruda Câmara deve explicar as providências adotadas, inclusive sobre como está a leoa.
Leoa do Parque Arruda Câmara: jovem falava desde criança em domar felinos
Parque Zoobotânico Arruda Câmara/AFP
O sonho de domar leões
Ele sempre teve o sonho de domar leões, lembra Verônica. Era uma coisa que falava desde criança. Há dois anos, por exemplo, Gerson invadiu o trem de pouso de um avião no aeroporto de João Pessoa porque desejava “ir à África, para o safári”.
“Ele conversava com os policiais como se nada tivesse feito. Ele não tinha discernimento do certo e errado”, diz. Para ela, o jovem provavelmente não compreendia o risco ao se aproximar da leoa.
“Se você olhar o vídeo direitinho, vai perceber: ele entra, sobe, vai para a árvore. Ela está deitada. Quando ele desce e vê ela se aproximando, ele para. Ela chega perto e não reage porque ele parou. Dá a impressão de que ele vai voltar a subir. Em um dos vídeos, dá para ver que ele gesticula. Creio que tenha falado com ela: ‘Fique aí’. Ele achou que não ia ter problema nenhum. Tentou descer para brincar com ela.”
Gerson chegou ao Conselho Tutelar pela primeira vez por volta dos 10 anos. Ele havia sido encontrado pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) caminhando sozinho pela BR-230. Segundo relatou à época, queria voltar para Mangabeira, onde encontraria a mãe.
“A gente foi até lá e era a casa da avó dele. E, para nossa surpresa, quando chegamos, a mãe estava muito desorientada. Ela é esquizofrênica, bem acentuada; a avó também. Aí ela olhou para ele e fez: ‘Menino, você não pode ficar aqui, não.’ ‘Não, mas eu quero ficar com você.’ Ela disse: ‘Não. O juiz disse que eu não sou mais sua mãe. Você tem que ir embora.’ Assim, como se estivesse falando uma coisa muito natural”, conta Verônica.
A mãe, por conta do quadro grave de esquizofrenia, havia perdido o poder familiar dos cinco filhos. Quatro deles foram adotados. Gerson permaneceu em instituições.
“A gente conversava com ele e ele dizia que não queria ficar no acolhimento, porque, na cabeça dele, o ideal era ficar com a mãe. Ele sempre foi muito apegado à mãe. Só que ela não tinha condições, como não tem até hoje. No sepultamento, a representante da Comissão de Direitos Humanos foi falar com ela. E aí me disse: “Verônica, ela está totalmente desorientada.” Ela disse: ‘Se ele tivesse sobrevivido, eu ia costurar ele todinho’.”
Influenciado a cometer furtos
Segundo Verônica, Gerson tinha forte ligação com animais. Ele pegava cavalos para passear, caminhava quilômetros com eles e os devolvia logo depois. Com o tempo, foi influenciado a cometer pequenos furtos, sempre sem planejamento ou intenção de dano. Foi ensinado a roubar motocicletas, que depois devolvia nas delegacias de polícia.
Nas redes sociais, ganhou o apelido de “Vaqueirinho”. “As pessoas começaram a ganhar likes postando coisas dele, incentivando ele a fazer coisas erradas. Era muito triste. Muitas vezes nós entramos com representação para retirar das redes sociais, porque estavam usando a imagem dele.”
Dos 12 aos 18 anos, Gerson foi apreendido dez vezes. Sentia-se seguro no sistema socioeducativo, já que tinha comida e ninguém mexia com ele. Quando saía, fazia algo para voltar. Ao ficar maior de idade, perdeu o direito ao acolhimento.
“Ele dizia que ia arrumar um jeito de ir para o presídio”, conta Verônica. “Era onde ele tinha comida, rotina, proteção.”
Gerson passou seis vezes pelo sistema prisional, sempre por atos sem planejamento, como tentar arrombar um caixa eletrônico perto de uma base policial, ou arremessar um paralelepípedo em uma viatura após ser liberado em audiência de custódia.
Há uma semana, no dia 25 de novembro, procurou o Conselho Tutelar pedindo ajuda para tirar documentos e fazer carteira de trabalho. Não conseguiu serviço.
“Hoje [no sepultamento], o padre disse na missa: ‘Ele era o nosso João Grilo de Ariano Suassuna’. Ele era daquele jeito. E aí ele foi para a jaula dos leões, onde a sociedade jogou ele.”
O que diz a prefeitura
Segundo a prefeitura de João Pessoa, Gerson agiu de forma rápida e surpreendente. De acordo com a perícia da Polícia Civil, ele teria agido em possível ato de suicídio.
“Embora as equipes de segurança tenham tentado impedir a ação, o homem agiu de forma rápida no acesso ao recinto e veio a óbito em decorrência dos ferimentos provocados pelo animal”, diz trecho.
A gestão municipal disse que o parque atende às normas técnicas.
Sobre a leoa Leona, a prefeitura afirmou que está recebendo os cuidados necessários e que ela se encontra bem. Ela foi avaliada pela equipe técnica após o incidente e segue em observação e acompanhamento contínuo, já que passou por elevado nível de estresse.
O Parque Arruda Câmara permanecerá fechado para visitação até a conclusão das investigações e dos procedimentos oficiais.
“A Leona está saudável, não apresenta comportamento agressivo fora do contexto do ocorrido e não será sacrificada. O protocolo em situações como essa prevê exatamente o que está sendo feito: monitoramento, avaliação comportamental e cuidados especializados.”
“A equipe da Bica, médicos veterinários, tratadores e técnicos está dedicada integralmente ao bem-estar da Leona, garantindo que ela fique bem, se estabilize emocionalmente e retome sua rotina com segurança.”



